quinta-feira, 3 de março de 2011

Céu, um lugar de branco infinito. Não vemos onde começa, não vemos onde termina. Deus, um ser alto e barbudo olha para esta estranha transformação, uma bola azul brilhante flutuando cheia de vida no ar. Intrigado, Deus vira para os anjos atrás dele.

DEUS:
Ta legal, quem fez isso? Vamos lá, não adianta se esconder. Quem teve a súbita vontade de se tornar o próprio criador?

Nenhum anjo se manifesta, até que timidamente uma voz sai do meio da multidão.

VOZ:
Acho que fui eu.

A multidão de anjos se abre como a divisão do Mar Vermelho por Moisés revelando no meio um faxineiro encabulado segurando seu esfregão.

DEUS:
É claro.

FAXINEIRO:
Desculpa.

DEUS:
Você tem idéia do problema que isso vai causar pra mim? Sabe as conseqüências que terei? Sabe?

FAXINEIRO:
Desculpa. O troço simplesmente caiu. Se um dos seus anjos tivesse colocado um pouquinho mais no fundo, eu não teria esbarrado com o cotovelo...

DEUS:
Típico. Agora culpa eles. Você sabe quanto isso me custou?

FAXINEIRO:
Tava muito no canto, foi uma cotoveladinha inocente. Se eu pudesse voltaria no tempo e concertaria esse estrago. Pode apostar!

DEUS:
Claro, voltar no tempo sempre parece ser a solução pra tudo. Como se fosse fisicamente possível!

FAXINEIRO:
Não fique tão surpreso, você pode criar um desses num estalar de dedos!

DEUS: Que ta fazendo? Ta zombando? Você derruba, quebra o vidro, deixa sair um planeta cheio de vida e ainda zomba?

FAXINEIRO: Eu sei, você ta certo. É muita pressão pra manter tudo branco, sabe? Vai... Você vai me demitir?

DEUS:
Não vou demitir você. Só que... Só que é um planeta! Um planeta está tomando vida bem diante dos nossos olhos! Dos meus olhos!

FAXINEIRO:
Eu preciso desse emprego, você sabe disso. Eu tenho filhos cara, filhos!

DEUS:
Não vou demitir você.

FAXINEIRO:
Bom. Bom. Obrigado. Posso ir agora? Eu ainda vejo muitas manchas por aqui. Não sei como elas aparacem, mas aparecem. To indo, ta? To indo.

O faxineiro vai embora, Deus ignora sua saída pra cair em seus próprios dilemas com aquela grandiosa criação fora do seu tempo. Pelo menos é o que parece. Ninguém esperava por isso, nem mesmo o próprio criador.

DEUS:
Um planeta. Mas que merda vou fazer com isso agora?

Então, depois de pensar por alguns breves segundos, algo vem em sua mente, algo esclarecedor. Deus teve uma brilhante idéia.

DEUS:
Filho. Eu preciso de um filho! Mas que brilhante idéia.

VOZ DO FAXINEIRO: Essa é uma terrível idéia!


fim do momento 1


Céu. Uma televisão modelo 1950 está sintonizada no noticiário. Não sabemos quem assiste e não sabemos (ainda) quem a ligou, mas ela está lá, sozinha neste imenso lugar branco. Na tela uma jornalista começa a falar.

JORNALISTA: É crescente o número de suicidas que andam preocupando os especialistas.

O jornal corta para um homem vestindo um roupão, sentado numa poltrona de couro fumando um cachimbo de frente a uma estante de livros. Este é o Dr. Harold Ramos Von Skulper, como diz na legenda.

DR. HAROLD RAMOS VON SKULPER: Hoje em dia as pessoas estão se matando pelas coisas mais fúteis. Como por exemplo não conseguir abrir um pacotinho plástico de mostarda pra colocar no seu sanduíche.

Dr. Harold pega um pacotinho de mostarda e tenta abrir. Ele desiste depois de algumas rápidas tentativas.

CLICK - Alguém (ou alguma coisa) faz a televisão mudar de canal. Não estamos mais no noticiário. Na tela aparece um homem no parapeito de um edifício segurando um pacote de leite. Ele está sorrindo, feliz com alguma coisa, como se não soubesse onde está.

CLICK - O canal é trocado novamente, desta vez não estamos mais no Céu. O cenário muda para dois maconheiros conversando com uma dupla de policiais num bairro suburbano na Terra.

SEGUNDO MACONHEIRO: Esqueci o som, como é que era?

PRIMEIRO MACONHEIRO: Acho que era... Bam! Bam!

POLICIAL UM: Foram dois disparos?

SEGUNDO MACONHEIRO: Acho tava mais pra um bang.

PRIMEIRO MACONHEIRO: Não, foi um bam.

SEGUNDO MACONHEIRO: Você vai ficar com o bam?

PRIMEIRO MACONHEIRO: Vou, eu fico com o bam.

POLICIAL DOIS: Vamos sair daqui, esses maconheiros não sabem de nada.

SEGUNDO MACONHEIRO: Agora eu quero ficar com o bam...

POLICIAL UM: Foram dois disparos? Vocês ouviram dois disparos?

PRIMEIRO MACONHEIRO: Não foram dois. Ou foram? Tipo... Seria meio impossível alguém colocar a arma na cabeça e apertar o gatilho duas vezes se fosse um suicídio.

SEGUNDO MACONHEIRO: Se fosse dois tiros não seria suicídio, seria homicídio.

PRIMEIRO MACONHEIRO: Correto.

POLICIAL DOIS: Ninguém falou nada de suicídio. Porque acham que foi suicidio?

SEGUNDO MACONHEIRO: Suicídio não ta na moda hoje em dia?

POLICIAL DOIS: Pra mim chega. Vamos levar pra DP. Andando!

Os dois policiais começam a levar bruscamente os maconheiros para a viatura. Assim que empurram a dupla pra dentro do carro (sem fechar as portas), o Policial Um chama o companheiro pra uma conversa particular na frente do automóvel, indicando ser um assunto de extremo segredo unicamente entre policiais.

POLICIAL UM: Olha cara, estive pensando. Eles não sabem de nada, se levarmos pra DP vai ser uma total perda de tempo. Não to a fim de passar por essa dor de cabeça. Estou bem cansado ter de lidar com esses tipos de playboys drogados.

Durante a conversa particular, umas pessoas começam a olhar da janela de suas casas. Uma idosa segurando seu gatinho persa sai de seu lar a caminho da viatura. Outros curiosos começam a fazer o mesmo.

POLICIAL DOIS: Merda. Agora a rua toda pra encher o saco.

POLICIAL UM: Eles devem saber mais do que esses dois imbecis. Senhora? Senhora?

Os policiais começam a pegar depoimento dos vizinhos enquanto os maconheiros aproveitando da situação saem da viatura calmamente e se escondem nas sombras. O Primeiro Maconheiro tira do casaco um bloco de papel, na capa está escrito em letras ornamentais “Plano Divino”. Parece importante.


fim do momento 2

Céu. Deus e Jesus Cristo estão comendo em uma longa e bela mesa de mogno. Cada um está numa ponta.

JESUS: Muito boa a carne.

DEUS: Gostou?

JESUS: Ta boa. Você que teve a idéia de derreter o queijo em cima?

DEUS: Não, foi a Arolda. Idéia dela.

JESUS: Conseguiu arrumar uma empregada que cozinhasse então?

DEUS: Consegui. Tive que falar com um monte de gente, ligar pra várias pessoas pra conseguir uma que soubesse cozinhar. Não duvido que tenha por ai algumas que cozinham, mas essa foi a única que indicaram que sabia como cozinhar.

JESUS: E você ta pagando a mais?

DEUS: Não, mesmo preço.

JESUS:
Sorte. Se ao menos eu tivesse isso que temos aqui enquanto eu estava vivo lá embaixo, as coisas seriam bem, bem diferente.

DEUS: Que isso quer dizer?

JESUS: Nada. Esquece.

DEUS: Fala.

JESUS: Eu passei por momentos meio complicados lá embaixo.

DEUS:
E...?

JESUS:
Sendo chicoteado, esfolado vivo ao som de risadas. Olha pra essas mãos! Eu ainda tenho esses malditos buracos! Tente jogar peteca com elas!

DEUS: Não seja um ingrato, ta legal? Olhe o lugar onde você ta agora. Você é o comandante da Terra. Pessoas dizem Jesus Cristo isso, Jesus Cristo aquilo, como se estivessem se referindo a mim também. Você foi posto num pedestal que faria qualquer deus ter inveja. Esses idiotas não sabem que nós somos diferentes? Que meu poder é maior que o seu? Eles não sabem que o pai é sempre o mais forte na escala celestial?

JESUS: Eu não pedi pra ser o comandante da Terra! Onde você estava quando eu tinha doze anos? Quando fiz meu primeiro milagre? Aonde você tava?

DEUS: Você não fez nenhum milagre aos doze. Aquele dia choveu areia porque era a natureza agindo, vento soprando e tudo. Aliás, te arrumei uma namorada na adolescência.

JESUS: Você chama aquilo de namorada? Ela era uma prostituta! Agora as minhas costas não é o único lugar que guardo cicatrizes. Se não fosse por José, eu nunca teria saído de casa. Ou devo dizer: toca de João-de-barro!

DEUS: José? Eu inventei o José! Agora fica calado e coma a comida que a Arolda fez!

JESUS: Se eu sou o comandante da Terra, quando é que vou poder descer e colocar em prática meus planos? Aquelas pessoas estão me esperando já faz muito tempo.

DEUS: Já falamos sobre isso. Você não vai agora.

JESUS: Posso ir agora?

DEUS: Não.

JESUS: E agora?

DEUS: Não!

Maria, a indefesa mãe de Jesus Cristo entra na sala.

MARIA: Mas o que eu falei sobre brigas na mesa de jantar?

DEUS:
Cala boca! Cala boca! Cala boca!

JESUS:
Não fale assim com ela!

DEUS:
Pra mim chega. Os dois, vai! Saiam daqui! Saiam!

Jesus e Maria saem deixando Deus comer sozinho e irritado. Desatento, leva o garfo até a boca machucando sua gengiva.

DEUS:
Muito obrigado! Agora to sangrando!


fim do momento 3

2 comentários:

Tia Duna disse...

Já leu "Belas Maldições" do Prachett e do Gaiman? Me lembra, só que a criação ao invés do apocalipse

Lysa disse...

hahahaha.... muito bom mesmo!